Inovação, Governança Digital e Políticas Públicas
Artigos

Implicações da e-participação para a democracia na América Latina e Caribe

Implicações da e-participação para a democracia na América Latina e Caribe

E-participation and its implications for democracy in Latin America and the Caribbean

CHRISTINA SOARES DE FREITAS

Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) – Brasília, DF, Brasil.

E-mail: freitas.christiana@gmail.com. ORCID: 0000-0003-0923-843X.

 

Edição v. 39 – número 2 / 2020

Contracampo e-ISSN 2238-2577

Niterói (RJ), 39 (2) ago/2020-nov/2020

A Revista Contracampo é uma revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e tem como objetivo contribuir para a reflexão crítica em torno do campo midiático, atuando como espaço de circulação da pesquisa e do pensamento acadêmico.

AO CITAR ESTE ARTIGO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

FREITAS, Christiana Soares de. Implicações da e-participação para a democracia na América Latina e Caribe.

Contracampo, Niterói, v. 39, n.2, p. XXX-YYY, ago./nov. 2020.

Submissão em: 17/07/2019. Revisor A: 08/08/2019; Revisor B: 15/08/2019; Revisor C: 29/08/2019. Aceite em: 01/09/2019

DOI – http://dx.doi.org/10.22409/contracampo.v39i2.29422

 

Resumo

O artigo visa analisar as repercussões políticas das inovações democráticas digitais em países da América Latina e Caribe. A questão central indaga em que medida as redes constituídas para o ativismo político na internet de fato contribuem para o desenvolvimento e a legitimidade de práticas democráticas. Para responder a essa inquietação foi realizada pesquisa para mapear e analisar quinhentas e vinte e seis (526) iniciativas de e-participação na região. Tais inovações tendem a consolidar e a reforçar práticas democráticas participativas; ampliar canais de comunicação entre cidadãos e governos; aprimorar as possibilidades de representação cidadã e fortalecer os mecanismos políticos e legais para controle social. Ainda assim, observa-se número reduzido de iniciativas com resultados efetivos. Quanto maior a penetrabilidade das demandas cidadãs em processos políticos formais, maiores as chances de as iniciativas transformarem-se, de fato, em instrumentos de consolidação e legitimação de práticas e processos democráticos participativos.

Palavras-chaves

Inovação Democrática Digital; Legitimidade Democrática; Políticas Públicas.

Abstract

The article aims at analyzing the implications of digital democratic innovations in Latin America and the Caribbean countries. The central issue is whether networks developed for political activism on the internet really contribute to the development and legitimacy of democratic practices. To answer this question a research was carried out with the goal of mapping and analyzing five hundred and twenty-six (526) e-participation initiatives. The initiatives tend to consolidate and reinforce democratic practices; increase communication channels between government and citizens; enhance citizens´ representation possibilities and strengthen legal and political mechanisms for social control. Nevertheless, there is still a small number of initiatives that show effective and verifiable results. The higher the penetrability of the initiatives in formal political processes the greater are the chances that they become means of consolidating and legitimizing democratic processes and practices.

Keywords

Digital Democratic Innovation; Democratic Legitimacy; Public Policies.

Introdução

Ainda que seja notória a progressiva formação de concepções e princípios democráticos que hoje moldam práticas específicas de atuação política como resultado da sociedade em rede, ainda existe pouca comprovação de que as várias iniciativas desenvolvidas com o intuito de fortalecer a democracia estejam, de fato, agindo nesse sentido. Cidadãos organizam-se em redes utilizando a internet como aliada em estratégias para gerar mais alcance e penetrabilidade de suas demandas e reivindicações. Resultados de pesquisas recentes apontam a internet como instrumento que pode viabilizar práticas e projetos que tendem a oferecer mais possibilidades de mobilização e reivindicação política aos cidadãos. Mas pode, de fato, a internet fortalecer a democracia?1

O artigo visa analisar as repercussões efetivas das inovações democráticas de e-participação na América Latina e Caribe. Inovações democráticas são normalmente definidas como instituições desenhadas para aumentar a participação cidadã2. São consideradas instrumentos para aperfeiçoar mecanismos políticos e legais com o intuito de estimular a atuação política, colaborando, com isso, para a formulação de programas governamentais, políticas públicas, leis e ações diversas no campo político (POGREBINSCHI, 2016).

Ao longo das últimas três décadas, várias estratégias governamentais foram adotadas com o intuito de estimular a participação em processos políticos por meio da internet. Pesquisas revelam, entretanto, que tais estratégias governamentais, sem uma considerável participação cidadã, tendem a ter alcance limitado, garantindo mais estabilidade institucional e legitimidade às organizações que nelas investem do que realmente fomentando processos democráticos que viabilizem a incorporação das demandas cidadãs a processos políticos formais (FREITAS e EWERTON, 2018).3

As iniciativas de e-participação4 – governamentais ou não – têm sido um dos meios mais usados para elaborar estratégias para o desenvolvimento de práticas democráticas em países da América Latina e Caribe. Atores governamentais e de organizações privadas, internacionais e da sociedade civil reconhecem a importância das tecnologias da informação e comunicação (TICs) para o aperfeiçoamento e aprofundamento de processos democráticos. Entretanto, observa-se, constantemente, a necessidade de avanços em relação as suas implicações em processos de tomada de decisão.

Os diferentes formatos de mídia existentes colaboram para o aumento das possibilidades de interação e o desenvolvimento de inovações voltadas a práticas democráticas participativas. A comunicação interativa e dialógica é facilitada, oferecendo mais espaços para troca de opiniões e para a construção de iniciativas que podem vir a mediar as relações entre cidadãos e atores governamentais. Como resultado, formas específicas de colaboração, discurso e organização – de pensamento, conteúdo e ação – vêm sendo progressivamente adotadas e implementadas por indivíduos, redes e organizações. Os commons, ou bens comuns, são resultados de algumas das formas de produção colaborativa de conteúdo na contemporaneidade (FREITAS e ARANHA, 2017; SILVEIRA, 2017).

Os movimentos políticos, atualmente, são constituídos por redes com estrutura policêntrica. As plataformas digitais tendem a ser utilizadas sem que haja uma coordenação hierárquica previamente estabelecida. Os atores responsáveis pelas ações organizadas em ambientes digitais focam em “organizar sem organizações”, por vezes independentes de lideranças tradicionais. Tal contexto sugere novas formas de se pensar o significado de estar ou ser politicamente engajado gerando, também, lógicas distintas de ação – tanto econômicas quanto políticas, culturais, sociais e simbólicas (BENNETT e SEGERBERG, 2013; COLEMAN, 2017).

Nesse sentido, cabe indagar em que medida as redes constituídas para o ativismo político na internet (ou ciberativismo) de fato contribuem para o desenvolvimento e legitimidade de práticas democráticas. Para responder a essa inquietação foi realizada pesquisa com o objetivo de mapear e analisar as iniciativas de inovação democrática que utilizam, como meio para o alcance de seus fins, as ferramentas de e-participação nos países da América Latina e Caribe. A pesquisa analisou 526 iniciativas de e-participação na região, extraídas da base de dados do projeto Latinno5 (POGREBINSCHI, 2017).

Os objetivos específicos da análise foram identificar as implicações das iniciativas e seus resultados efetivos; analisar as repercussões das iniciativas quanto a seus meios e fins; analisar, comparativamente, os resultados das inovações com base em diversas características, como o grau de formalização e a influência em processos de formação da agenda, formulação, tomada de decisão, implementação e avaliação de políticas. Também foi interesse analisar os resultados não-intencionais das iniciativas.

Algumas hipóteses nortearam a pesquisa. O objetivo da primeira hipótese foi verificar a afirmação de que as inovações formalizadas – aquelas já inseridas em mecanismos formais, como a constituição de um país, suas leis, programas e políticas – tendem a ter mais resultados efetivos do que aquelas sem apoio. Também foi verificada a hipótese de que as iniciativas que combinam meios e fins, aqueles definidos pela metodologia do Projeto Latinno, produzem mais resultados do que aqueles com um meio desenvolvido para o alcance de uma finalidade apenas.

A questão central da pesquisa diz respeito às implicações das ferramentas de e-participação no sentido de transformarem – com efeitos verificáveis – instituições, processos políticos e governamentais. Seria possível afirmar que as ferramentas de e-participação são fundamentais para a consolidação e o aprofundamento de práticas democráticas participativas na América Latina e no Caribe? O objetivo central da pesquisa, portanto, foi analisar a repercussão efetiva das iniciativas de e-participação em processos políticos formais, garantindo – ou não – legitimidade democrática às práticas impulsionadas pelas inovações estudadas.

Referencial teórico-metodológico

As ações políticas de movimentos contemporâneos – por alguns autores consideradas como ações conectivas (BENNETT e SEGERBERG, 2013; COLEMAN, 2017) – apresentam uma tensão fundamental. Por um lado, têm penetração significativa em movimentos sociais e coletivos, atraindo a população pela sua versatilidade, agilidade e independência em relação a organizações tradicionais. Possuem a capacidade de estimular formas de ação política baseadas na coordenação de energia dispersa de indivíduos e movimentos descentralizados sob a forma de redes policêntricas (COLEMAN, 2017, p. 20). Por outro, a sustentação, a continuidade e a penetrabilidade dessas ações em processos políticos representam um desafio. Esse desafio é observado tanto nas estratégias de mobilização a curto prazo quanto nas de formulação de políticas a longo prazo.

Esperava-se que a internet viesse a colaborar para garantir a sustentabilidade de inovações voltadas à expansão e consolidação da democracia, tendo como base dessa visão ideias utópicas que começam com o próprio início da internet. Desde os ciberlibertários – com a ideia de que nenhum governo seria capaz de ter controle sobre o ciberespaço (BARLOW, 1996) – até os entusiastas contemporâneos da democracia digital, a ideia da internet como um instrumento de transformação, aprofundamento e consolidação da democracia – especialmente a participativa – sempre esteve presente, não só na produção acadêmica do campo de internet e política, mas também em discursos governamentais e da sociedade civil. Para verificar essa perspectiva foi analisado o trajeto que percorrem demandas cidadãs até gerarem algum tipo de interferência verificável em processos governamentais, concretizando-se como um artefato legal ou político.

As demandas dos cidadãos por ações, programas e políticas públicas, seja a curto ou a longo prazo, podem vir a gerar resultados ou interferências no campo político. Essas demandas são, geralmente, fluidas, às vezes pontuais e fragmentadas, facilmente disponibilizadas e acessadas em ambientes digitais. A qualidade democrática desses produtos ou resultados pode ser avaliada em termos de sua extensão e conteúdo, ou seja, aonde chegam, como chegam e com que tipo de apoio e legitimidade. Significa dizer que as demandas apresentarão legitimidade democrática caso produzam resultados efetivos – aqui considerados como outputs e outcomes – em sistemas e processos políticos formais. Vale destacar que essa noção de resultados efetivos (outputs e outcomes) não se refere apenas a aqueles associados diretamente a políticas públicas, mas abrangem, também, ações governamentais diversas, focalizadas ou não, processos institucionais, leis e mecanismos relacionados a processos de formulação de políticas e projetos em sentido abrangente.

De acordo com essa concepção, a legitimidade democrática é estabelecida quando um sistema político não apenas estimula os inputs dos cidadãos, mas também inclui essas demandas nos processos de elaboração de políticas e leis. Se isso não acontece, verifica-se ausência de legitimidade democrática (COLEMAN, 2017). Castells afirma, ainda, a necessidade tanto das instituições políticas serem permeáveis às demandas (inputs), quanto a dos próprios movimentos sociais, também, quererem negociar. Algumas redes não apresentam essa disposição, dificultando a legitimação de suas ações e práticas a longo prazo (CASTELLS, 2013).

O desenho das práticas comunicacionais é um dos meios que delineiam as formas possíveis de exercício de poder numa dada sociedade. Os vários modos de comunicação e manifestação política – viabilizados pelos tipos de ambientes digitais – promovem diferentes possibilidades de engajamento cidadão, oferecendo meios para a criação e sistematização de demandas (inputs). Tais meios, contudo, variam significativamente, sendo mais ou menos próximos de oferecer possibilidades de transformar efetivamente essas demandas cidadãs em mecanismos de ação (como recomendações, propostas e políticas) que passam a ser formalmente considerados.

O tipo de ambiente digital desenhado viabiliza, de forma mais ou menos intensa, essa transformação. Enquanto alguns recursos tecnológico-informacionais contribuem para a formação de espaços para denúncias, avaliação e monitoramento, outros apresentam projetos estruturados a longo prazo para engajamento cidadão em discussões ou propostas concretas para implementação de políticas públicas, leis ou ações governamentais específicas. Entretanto, a existência e o desenho desses variados tipos de recursos não irão garantir, necessariamente, o sucesso das iniciativas. Nesse sentido, Chadwick afirma que os programas de e-democracia bem-sucedidos requerem uma pluralidade de diferentes valores e mecanismos sociotécnicos (CHADWICK, 2009, p. 12). Necessário considerar, ainda, que democracia e tecnologia estão dialeticamente entrelaçadas. A democracia não é adotada e depois mediada pela tecnologia, mas sim realizada por atos de mediação (COLEMAN, 2017).

Algumas pré-condições são essenciais para garantir a existência de atos democráticos. Deve existir, antes de mais nada, a capacidade de reconhecimento social comum, uma compreensão das inúmeras formas de conexão da vida de um indivíduo com os demais. Essa característica gera reflexividade, vista como a capacidade dos indivíduos de “gerenciarem sua própria auto-apresentação e não ter sua identidade esculpida por outros. Há uma batalha incessante por olhos e ouvidos (economia da atenção), determinando quem terá visibilidade política e cultural. Nesse contexto, ser notado ou notório é uma forma de poder social; a atenção se torna uma moeda valiosa” (COLEMAN, 2017, p. 65).

Além disso, faz-se necessária a circulação de experiências intercambiáveis. A cultura comum gerada é o produto de experiências compartilhadas, desde momentos nacionais e globais a eventos do cotidiano e ritmos de interações sociais. A proliferação de diferentes narrativas online gera implicações para o conceito de notícia e para a constituição dessa cultura comum que passa a ter efeitos diretos e indiretos na agenda política. Políticos, atores governamentais, tomadores de decisão e outros atores interessados estão atentos ao que circula na internet como temas de interesse dos cidadãos – sejam esses conteúdos mensagens, manifestos ou pegadas digitais deixadas no ciberespaço como, por exemplo, em mecanismos de busca.

Outra pré-condição para atos verdadeiramente democráticos está na capacidade dos indivíduos de

[…] reunirem informações confiáveis para que possam ter, ao menos, alguma ideia dos muitos desafios pelos quais passa a sociedade contemporânea, das visões em conflito e das suas escolhas como voters. Para tanto é fundamental existir fontes plurais de informação para que os indivíduos possam fazer sentido do mundo com sua própria visão/perspectiva (COLEMAN, 2017, p. 66).

As demais pré-condições incluem a existência de hábitos e mecanismos discursivos que viabilizem processos democráticos deliberativos – como uma linguagem reconhecida de discordância pública –, a coordenação social como capacidade de fazer aprimoramentos sociais e erradicar injustiças sociais, de agir coletivamente em resposta a situações e experiências suscetíveis ao controle humano. Coleman, nesse sentido, enfatiza a importância de considerar o acesso a recursos comunicacionais como um direito civil indispensável (COLEMAN, 2017). Por fim, o autor também aponta como pré-condição para a existência de atos democráticos a confiança em centros de autoridade, sejam eles políticos, corporativos ou civis e a capacidade dos indivíduos de examinar e avaliar políticas implementadas.6

Portanto, para que as inovações gerem os efeitos desejados, no sentido de ampliarem e consolidarem práticas democráticas, é imprescindível que tais pré-condições estejam presentes como características da cultura política dos países analisados. Tais características, ou elementos estruturantes de uma sociedade, condicionam as possibilidades de repercussões efetivas das demandas cidadãs em processos políticos governamentais.

De acordo com a metodologia aplicada, a iniciativa democrática terá obtido resultados efetivos quando for possível observar mudanças em processos políticos formais ou instituições a partir da sua implementação. Nesse caso, a iniciativa terá gerado resultado como output ou outcome. Se houve proposta de resultado, como recomendações e diretrizes para políticas específicas, projetos de lei, mas não necessariamente a lei implementada, outputs são identificados7. Um projeto de lei é exemplo de output. Se for sancionado e publicado, tornando-se lei, torna-se outcome. Os outcomes, portanto, referem-se às “decisões e ações de autoridades políticas: são as políticas implementadas e os seus efeitos sociais” (COLEMAN, 2017, p. 21). O mesmo pode ser verificado em processos de implementação de ações e políticas. Se recomendações – consideradas outputs – para determinadas políticas ou ações foram levadas em consideração pelo poder público e foram implementadas, houve outcome daquela inovação democrática em análise.

Tanto os outputs quanto os outcomes fazem parte de um conjunto de variáveis de impacto aplicadas às inovações democráticas mapeadas na América Latina e Caribe pelo projeto Latinno (POGREBINSCHI, 2017). As 526 iniciativas de e-participação identificadas pela plataforma foram analisadas com base nessas duas variáveis: outputs e outcomes. A implementação e o cumprimento da finalidade também são variáveis de impacto consideradas pela metodologia8.

As inovações democráticas de e-participação foram analisadas também com referência às etapas de formação da agenda, formulação, tomada de decisão, implementação e avaliação de políticas públicas, com o intuito de avaliar a possibilidade de associação entre resultados efetivos das iniciativas de e-participação e determinadas etapas do processo de construção de políticas públicas. Haveria mais iniciativas com resultados verificáveis associadas a uma fase específica de desenvolvimento das políticas? Até que ponto a sua efetividade estaria ligada a uma dessas etapas? Iniciativas voltadas para a formação da agenda tendem a gerar mais resultados efetivos do que aquelas destinadas à avaliação de programas e políticas? Ou a associação a uma ou outra etapa não influenciaria os resultados?

Foram consideradas cinco formas possíveis de interferência em processos políticos no que tange a políticas públicas, especificamente. Em um primeiro momento, a inovação pode ter sido desenvolvida como forma de apresentar temas possíveis para inclusão na agenda. Com isso, problemas e demandas cidadãs podem vir a chamar a atenção de atores governamentais. Fazer parte do processo de formação da agenda é compreendido aqui em sentido amplo. Uma plataforma que disponibiliza demandas e conteúdos para construção colaborativa de leis, contribuindo para o surgimento de novos temas a pautar o cenário político, pode ser uma iniciativa associada a essa fase. O e-Democracia, por exemplo – plataforma da Câmara dos Deputados que tem como intenção principal criar ambientes digitais colaborativos para produção de projetos de lei – interfere em processos políticos associados tanto à definição da agenda quanto à formulação e tomada de decisão (FREITAS et al., 2015).

Uma inovação que colabora para a formulação de políticas pode envolver processos como a formulação de programas, projetos e leis. A formulação refere-se “ao modo como as propostas de política são elaboradas e formuladas no âmbito governamental” (HOWLETT et al., 2013, p. 15). Já a tomada de decisão refere-se ao processo pelo qual os governos adotam ações e inações. Vale reiterar que essas etapas são consideradas aqui como modelos típico-ideais, já que a realidade envolve cenário complexo aonde tal separação revela-se inviável. Abrucio e Loureiro, ao tratarem do papel dos burocratas nas sociedades democráticas contemporâneas, afirmam que

[…] as políticas públicas são aprovadas pelo Poder Legislativo de forma muito genérica e vaga, o que acaba exigindo a intervenção dos burocratas para seu detalhamento e sua especificação. Assim, parte importante das decisões relativas a uma política governamental faz-se no momento de sua implementação, e não apenas no de sua formulação e aprovação pelos parlamentares. O envolvimento dos burocratas com a tomada de decisão é visto, na verdade, como processo inevitável no mundo contemporâneo e, em certo sentido, até desejável (ABRUCIO e LOUREIRO, 2018, p. 35).

A fase de tomada de decisão, portanto, perpassa todo o processo de construção de políticas públicas. A fase de implementação refere-se ao momento de execução da política, quando os governos encaminham as decisões para concretização. Tais decisões são, muitas vezes, abrangentes, nada específicas, gerando a necessidade de intervenção e formulação de ações específicas durante o processo de implementação de uma política pública. A fase de avaliação e monitoramento refere-se “aos processos pelos quais tanto os atores estatais quanto os sociais monitoram os resultados das políticas” (HOWLETT et al., 2013, p. 15). Uma plataforma de denúncia de uso indevido de recursos públicos realiza atividades de monitoramento que podem vir a gerar uma ressignificação dos problemas, demandas e soluções.

Ressalta-se, aqui, que essa divisão em fases foi aplicada apenas para fins analíticos e não significa afinidade com perspectivas teóricas que analisam o processo de forma linear. Autores como Surel e Muller sugerem abordagem distinta, indicando que essa perspectiva tradicional pode mascarar fenômenos não necessariamente associados a cada etapa e ignorar dinâmicas nem sempre lineares de constituição das políticas públicas (SUREL e MULLER, 2002; LINDBLOM, 1980). Isso porque o processo não é sequencial como o ciclo tradicionalmente considerado pela literatura do campo sugere.

Surel e Muller (2002) apresentam, também, o que é posteriormente elaborado pelos estudos de ciência e tecnologia: a premissa de que a análise da realidade social e política passa pela compreensão dos mecanismos não institucionalizados, das práticas e micropráticas, nem sempre identificadas como formais, sendo estes elementos também responsáveis pela caracterização de determinada realidade (EPSTEIN et al., 2016). Além disso, o referencial teórico-metodológico aqui adotado oferece instrumento analítico mais abrangente do que a análise tão somente de políticas públicas. Interessa, nesse sentido, a análise de iniciativas voltadas à produção colaborativa de leis e outros resultados na esfera política que não sejam, necessariamente, associados a políticas públicas

Repercussões das inovações democráticas digitais

Os resultados revelam o quanto as iniciativas pesquisadas promovem – ou não – práticas democráticas legítimas, no sentido de viabilizarem a transformação de conteúdo e demandas, gerados pela participação cidadã nas iniciativas de e-participação em ações, programas, políticas ou leis, levando- se em consideração que a legitimidade de processos democráticos está na relação que se estabelece, mais ou menos direta, entre insumos – sob a forma de demandas ou inputs – e produtos (outputs e outcomes). Os primeiros dados a destacar referem-se à quantidade de inovações que produziram resultados.

Das 526 iniciativas analisadas, 286 geraram outputs (ou 54,3% do total) e apenas 112 (21,3%) produziram outcomes. Esses dados já indicam que a quantidade de iniciativas que alcançam, de fato, seus objetivos, é bem menor do que a quantidade total proposta, colocando em xeque a legitimidade dessas iniciativas de e-participação como práticas legitimamente democráticas.

Repercussões quanto à formalização das iniciativas

Ao analisar os resultados relativos à formalização das iniciativas, interessou confirmar ou refutar a hipótese de que as inovações formalizadas – ou seja, aquelas já inseridas em mecanismos formais, como a constituição de um país, suas leis, programas e políticas públicas – tendem a ter mais outputs e outcomes do que aquelas ainda não apoiadas por tais mecanismos. A análise revela que, dentre as 286 iniciativas que alcançaram outputs, os percentuais maiores de resultados efetivos estão, de fato, nas inovações que possuem algum apoio formal, seja por meio de ações, programas ou políticas específicas, seja por previsão constitucional e legal.

A análise da figura a seguir permite a constatação de que o apoio a uma inovação democrática pode vir a ser fator determinante para o seu sucesso como instrumento democrático.

Gráfico 1 – Quantidade e percentual de outputs quanto à formalização.

Fonte: A autora, 2018

Das inovações sem qualquer tipo de apoio, 46% geraram outputs. Já no universo das inovações formalmente apoiadas por políticas ou programas governamentais, 68% geraram outputs. Nas inovações fixadas ou previstas em constituição ou em outras leis, 62% geraram outputs.9

Apesar da existência de mais inovações sem qualquer forma de apoio institucional ou legal em termos quantitativos, o percentual de outputs destas é bem menor do que aquele relacionado às inovações com alguma forma de previsão legal ou política. Ou seja, as iniciativas que apresentam respaldo político ou legal tendem a gerar mais resultados.

Ao analisar os outcomes em relação ao grau de formalização, resultados ainda mais claros no sentido de confirmar a hipótese são observados. De acordo com a figura a seguir, observa-se que apenas 13% das inovações sem qualquer tipo de apoio geraram outcomes. Em contrapartida, 33% das inovações com apoio político e governamental geraram consequências efetivas. A forma mais eficaz de garantir outcomes parece mesmo ser quando existe previsão legal de atendimento à determinada demanda. Das 34 inovações com essas características, 12 geraram outcomes – ou 35% do total, como pode ser observado na figura a seguir.

Gráfico 2 – Quantidade e percentual de outcomes quanto à formalização

Fonte: A autora, 2018

Portanto, as inovações formalizadas a partir de programas governamentais, políticas públicas e, especialmente, aquelas já previstas na Constituição, tendem a gerar mais resultados do que aquelas sem apoio claro e legítimo. Logo, a falta de institucionalização tende a dificultar a legitimidade de práticas democráticas participativas.

Repercussões quanto aos meios

De acordo com a metodologia aqui adotada, são quatro os meios possíveis de desenvolvimento de uma inovação democrática: participação digital, deliberação, voto direto e representação cidadã (POGREBINSCHI, 2016).

A participação digital refere-se a

[…] todas as formas de participação que envolvem tecnologia da informação e comunicação (TIC). Estas incluem computadores conectados à internet e dispositivos móveis – digitais (apps) ou analógicos (SMS). A participação digital requer algum tipo de engajamento por parte do cidadão (muitas vezes combinados com formas de deliberação ou voto direto), e não apenas o acesso a dados abertos ou outras informações (POGREBINSCHI, 2017, p. 27).

A deliberação diz respeito às formas de interação mútua nas quais os participantes têm a oportunidade de expressar suas opiniões e ouvir a perspectiva dos demais em um processo constante de troca comunicativa. Já o voto direto representa os instrumentos de democracia direta. São exemplos o referendo, o plebiscito, a consulta pública, a revogação de mandato e todas as demais opções de votação direta existentes. Por fim, a representação cidadã é o meio que abarca todas as formas de engajamento cidadão ou de organizações da sociedade civil10.

Foi verificada a hipótese inicial de que as iniciativas que combinam meios produzem mais resultados. As iniciativas que têm como meio para seu desenvolvimento a e-participação combinada com voto direto, deliberação ou representação cidadã apresentam mais resultados efetivos, ou mais outputs e outcomes.

Em relação aos outputs, a combinação entre e-participação e voto direto foi o conjunto de meios que mais se mostrou eficiente, sendo que, do total de 9 inovações, 8 geraram outputs – ou 89% do total. As que menos alcançaram outputs foram aquelas que utilizam como meio apenas a e-participação. Do total de 333 iniciativas com essa característica, 143 (ou 43%) geraram outputs.

Em relação aos outcomes, a mesma tendência é observada, sendo as iniciativas que combinam e-participação com deliberação e com o voto direto aquelas que mais geraram resultados, como pode ser observado na figura a seguir.

Gráfico 3 – Quantidade e percentual de outcomes de acordo com meios

Fonte: A autora, 2018

Repercussões quanto aos fins

As iniciativas podem ser compreendidas também a partir dos seus fins. Na metodologia adotada são cinco as finalidades possíveis de uma inovação democrática: accountability; responsividade; estado de direito; inclusão política e igualdade social11. Interessou aqui verificar a hipótese de que as iniciativas que combinam vários fins têm mais resultados efetivos.

Das iniciativas estudadas, 267 (50,7% do total) vêm sendo desenvolvidas para promover

accountability nos países da América Latina e Caribe. Accountability abrange

  […] todas as formas não eleitorais em que governos, instituições, administradores eleitos e representantes são obrigados a prestar contas de seus atos, ou seja, responder por suas ações e omissões. As inovações democráticas destinadas a melhorar accountability promovem atividades tão diversas quanto monitoramento de desempenho institucional, divulgação de informações públicas, sanção de funcionários públicos e fiscalização da prestação de serviços públicos” (POGREBINSCHI, 2017, p. 34).

A responsividade, caracterizada como as “formas de expressão das preferências políticas dos cidadãos e sua correspondente consideração pelos governos” (POGREBINSCHI, 2017, s/p), está presente em 250 das 526 iniciativas. Os demais fins estão presentes nas iniciativas também de forma significativa. São 87 com a finalidade de igualdade social; 140 voltadas à inclusão política e 118 associadas ao Estado de direito ou Rule of Law12.

As iniciativas que mais produziram outcomes são aquelas que combinam dois ou três fins. Das 526 iniciativas, 354 iniciativas (ou 67% do total) foram desenvolvidas para atender a mais de um fim. Das 172 desenvolvidas para o alcance de um só fim, apenas 16% geraram outcomes. Em relação ao percentual das iniciativas que apresentam mais de um fim, observa-se que foram 24% das iniciativas com fins combinados a gerar outcomes. Portanto, resultados efetivos são observados com maior frequência nas iniciativas que combinam fins, como sugeria a hipótese inicial.

Implicações para Políticas Públicas

Foi realizada análise da relação entre os resultados efetivos das iniciativas de e-participação e as etapas possíveis para direcionamento das demandas. As iniciativas de e-participação estão distribuídas de forma relativamente homogênea entre as etapas associadas à construção de políticas públicas. Vale ressaltar, também, que as inovações não tendem a estar associadas a apenas uma das fases.

Do total de 526 iniciativas analisadas, 165 (ou 31,4% do total) têm como intuito criar mecanismos para incluir temas em processos de formação da agenda; 27% focam sua atenção na etapa da formulação de políticas e de outros mecanismos políticos e legais, sempre atuando de forma combinada com outra fase; 27% são inovações que colaboram para o processo de tomada de decisão; 36% das iniciativas são voltadas à implementação de políticas e 37,6% tem como seu maior objetivo influenciar processos de avaliação e monitoramento de ações, programas, leis e políticas públicas.

Do total de 165 inovações dedicadas à formação da agenda, 104 (ou 63% delas) produziram outputs. Quando se trata de resultados efetivos (ou outcomes), o percentual cai para 22%. Ou seja, apenas 36 iniciativas geraram outcomes de fato. O mesmo pode ser observado nas demais etapas. Das 142 iniciativas voltadas à formulação de políticas, 120 (84,5%) geraram outputs e apenas 62 delas (ou 43,66%) geraram resultados concretos sob a forma de outcomes. Na fase da tomada de decisão, todas as 142 iniciativas produziram outputs, mas apenas 62 (ou 43,6%) geraram outcomes.

Ao analisar a etapa da implementação, vê-se que das 189 iniciativas mapeadas, 88 (ou 46,5%) alcançaram outputs e apenas 33 (ou 17,5%) produziram outcomes. A análise da etapa de avaliação e monitoramento, por sua vez, revela que das 198 iniciativas, 96 geraram outputs, ou 48,5% delas. O percentual de outcomes nessa etapa é também baixo – 15,15% das iniciativas, ou apenas 30 delas, repercutiram de forma efetiva para alguma transformação, como ilustra a figura a seguir.

Gráfico 4 – Outputs e Outcomes por etapas

Fonte: A autora, 2018

Apesar de haver uma quantidade maior de iniciativas para implementação e avaliação, observa-se que o maior percentual de iniciativas bem-sucedidas, com resultados efetivos (outcomes) está na etapa de formulação de políticas.

Do total de 526 iniciativas, 327 (ou 62%) desenvolvem projetos associados a apenas uma etapa. Ou seja, a construção de um ambiente sociotécnico digital gera possibilidades diversas, combinadas e multifacetadas de ação política. Esse dado expressa também a não linearidade presente no processo de construção de políticas públicas e de outros mecanismos políticos e legais. Uma iniciativa para avaliação e monitoramento pode gerar dados que levem a um novo tema na agenda governamental, ao mesmo tempo em que pode vir a interferir, de forma quase simultânea e não sequencial, no processo de formulação de políticas públicas.

Resultados não-intencionais

Os resultados das iniciativas podem ser utilizados para fins outros que não aqueles previamente estabelecidos, vindo a gerar resultados não-intencionais ou externalidades, positivas ou não. Isso porque não apresentam, em seu desenho inicial, o intuito deliberado de produção de outputs ou outcomes.

Por um lado, as iniciativas podem vir a gerar efeitos como maior fiscalização das contas públicas, publicização de um problema ou desenvolvimento de meios de conscientização dos cidadãos como, por exemplo, capacitação para a compreensão e interpretação de dados abertos. Por outro, os dados produzidos podem também ser usados para fins não previstos e não necessariamente voltados à expansão democrática. Aplicativos como Onde fui roubado, em que um mapa georreferenciado das zonas urbanas é disponibilizado e os cidadãos informam onde foram assaltados, roubados, podem tanto colaborar para ações governamentais no sentido de mitigar a situação como servir de informações úteis para o crime organizado.

Um exemplo de iniciativa que gerou resultados – a princípio não-intencionais – foi a plataforma digital Chega de Fiu Fiu. A iniciativa da Fundação Olga colhe depoimentos e dados diversos sobre assédio sexual contra mulheres no Brasil. Após um tempo de funcionamento, o Ministério Público de São Paulo estabeleceu parceria com a organização não governamental para a elaboração de cartilhas e campanhas de conscientização da população (outcomes).

Mesmo não tendo qualquer intenção de gerar resultados efetivos em seu início que não o da denúncia de situações intoleráveis, a rede responsável pela iniciativa gerou repercussões objetivas – outcomes – para a solução do problema. Tem-se aqui o retrato de uma iniciativa que passa a gerar subsídios, seja para uma nova agenda ou para a formulação de ações, programas e políticas. É exemplo de iniciativa que teve sua demanda transformada em ações propositivas concretas junto ao poder público, ainda que não tivesse sido um objetivo declarado nem construído a priori.

Portanto, iniciativas que não foram criadas para produzir outputs ou outcomes podem acabar gerando-os de forma involuntária e com efeitos imprevistos, colaborando para a constituição de novas práticas políticas e composição de capital simbólico específico (BOURDIEU, 2011).

As concepções e práticas dos atores envolvidos na criação e continuidade das redes analisadas apontam para tendência à expansão e diversificação das formas de atuação política, desenvolvidas em contexto caracterizado pela pulverização dos processos de tomada de decisão, pela não centralidade de instituições políticas tradicionais e, também, pela reconfiguração e reestruturação das formas de controle democrático (BROUSSEAU et al., 2012).

Conclusão

As iniciativas estudadas são expressão clara de período histórico vivido durante algumas poucas décadas na região, em que a democracia participativa foi encorajada e estimulada em uma grande parte dos países. Houve, com isso, avanços no desenho das inovações com foco em práticas democráticas participativas. Ainda que não sejam todas as inovações voltadas diretamente para a viabilização de um efetivo engajamento cidadão, a existência de algumas redes já sustentáveis revela tendência à ampliação e consolidação dessas arenas políticas de deliberação.

A ausência de algumas pré-condições necessárias para a existência de atos democráticos em países da América Latina e Caribe pode ser um fator a explicar o número reduzido de resultados efetivos, identificáveis, das iniciativas de e-participação. Como visto, os recursos tecnológico-informacionais disponíveis não garantem a participação cidadã nem a existência de instâncias pluriparticipativas para expandir e aprofundar práticas democráticas.

A partir dos resultados analisados foram observadas tendências ao aumento do controle social, especialmente sobre as práticas do poder legislativo e à progressiva institucionalização de cultura política com foco na transparência e em práticas de participação política digital capazes de interferir, de forma mais ou menos significativa, no processo de construção de mecanismos políticos e legais que reforcem a democracia.

Foi observado que a formalização das iniciativas é fator fundamental para seu sucesso e sustentabilidade. As inovações formalizadas, sob a forma de programas governamentais, políticas públicas ou mecanismos legais tendem a gerar mais resultados. A característica híbrida da iniciativa, combinando vários meios e fins, também tende a gerar iniciativas sustentáveis e com mais resultados significativos.

Em relação às repercussões das iniciativas para políticas públicas, foi observada uma quantidade maior de iniciativas voltadas à implementação e avaliação. Contudo, o maior percentual de iniciativas bem-sucedidas, com resultados efetivos (outcomes) está nas etapas de tomada de decisão e formulação de políticas. Pesquisas futuras serão desenvolvidas com o intuito de aprofundar as análises para compreensão das causas e efeitos dessas constatações.

As características híbridas que conformam as inovações associadas aos processos de construção de políticas deixam claro que o ambiente sociotécnico digital construído gera possibilidades diversas de ação política e revelam também a não linearidade presente no processo de construção de políticas públicas e de outros mecanismos políticos e legais.

Uma das descobertas mais interessantes está relacionada aos efeitos imprevistos ou não- intencionais das iniciativas, podendo vir a incrementar processos democráticos. Iniciativas que não foram criadas, necessariamente, para produzir outputs ou outcomes podem vir a gerá-los. Portanto, as redes que não nasceram já com o intuito de interferir em processos políticos governamentais podem vir a interferir, mais ou menos diretamente, a curto ou a longo prazo. Colaboram para um processo mais subjetivo de conscientização política e empoderamento cidadão, podendo vir a oferecer subsídios para a elaboração de políticas públicas e outras ações governamentais.

As iniciativas estudadas podem vir a fortalecer o exercício da cidadania e os processos democráticos ao viabilizarem a participação política de forma mais direta, por meio de espaços que reconfiguram e ressignificam processos de controle social, político e simbólico. Com isso, maior transparência das ações passa a ser possível. Além disso, podem vir a promover o aumento da diversidade de atores na discussão pública e nas instâncias de decisão política, aumentando instrumentos, meios e oportunidades para que minorias estejam representadas em processos políticos formais.

Essas possibilidades, contudo, dependem das orientações políticas de cada momento histórico. Como dito, a expansão dessas redes – bem como a consolidação de outros mecanismos de participação política democrática – foi resultado de algumas poucas décadas ininterruptas de democracia em quase todos os países da América Latina e Caribe, ainda que com práticas antidemocráticas sendo ocasionalmente observadas13. A continuidade do estímulo a esses mecanismos vai depender da conjuntura política que irá estabelecer e orientar as estratégias adotadas. Outro fator fundamental para garantir essa continuidade será a consolidação de práticas políticas baseadas na participação e no controle social dos processos políticos, hoje potencializadas por meio dos recursos tecnológico-informacionais existentes.

Portanto, as redes para o ciberativismo, expressas sob a forma de inovações democráticas que utilizam estratégias de e-participação, tendem a consolidar e a reforçar práticas democráticas participativas, podendo estimular a participação mais efetiva dos cidadãos em processos políticos; ampliar os canais de comunicação entre cidadãos e governos; aperfeiçoar as possibilidades de representação cidadã e fortalecer os mecanismos políticos e legais para controle social. Quanto maior a penetrabilidade das demandas cidadãs em processos políticos formais, maiores as chances de os resultados das iniciativas se transformarem, de fato, em instrumentos de consolidação e legitimação de processos democráticos participativos.

Essas redes são, portanto, iniciativas fundamentais para o alcance das pré-condições necessárias para a existência de atos democráticos. São meios para o alcance de sociedades mais democráticas. A questão central a ser respondida a seguir é como tornar as iniciativas sustentáveis e com mais resultados efetivos, capazes de gerar, de fato, transformações políticas.

Christina Soares de Freitas é pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), sendo professora associada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Instituição. Pós-doutora em Políticas Públicas e Democracia Digital pelo GovLab, New York University (NYU). Líder do Grupo de Pesquisa em Estado, Regulação, Internet e Sociedade (GERIS). Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD).

  1. Essa pergunta foi título de livro de Coleman em
  2. De acordo com essa perspectiva, é o objetivo específico de promover a participação cidadã que qualifica um novo desenho institucional como inovação democrática. Parte-se do pressuposto de que a participação cidadã não é apenas um fim, mas principalmente o meio das inovações democráticas. O propósito ou fim das inovações democráticas são as muitas dimensões da qualidade da democracia, como accountability, responsividade, inclusão política, igualdade social e Estado de direito. A participação cidadã é um meio para se atingir estes fins e assume diferentes formas, tais como o voto direto, a participação digital, a deliberação e a representação cidadã. Diferentes meios e fins são combinados de diferentes maneiras, e tal experimentação é característica da democracia na América Latina, onde a participação cidadã evolui dentro do sistema representativo e sem competir com ele (POGREBINSCHI, 2017).
  3. Por processos políticos formais entende-se aqui o conjunto de mecanismos responsáveis pelos proces- sos de formulação, implementação e avaliação de políticas em sentido mais Responsáveis por esses mecanismos são os atores representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário: legislado- res, executores, administradores e juízes (VIANA, 1996, p. 15).
  4. Por e-participação entende-se “todas as formas de participação que envolvem tecnologia da informação e comunicação (TIC). Estes incluem, além de computadores conectados à internet, dispositivos móveis digitais (apps) ou analógicos (SMS). A participação digital requer algum tipo de engajamento por parte do cidadão (muitas vezes combinados com formas de deliberação ou voto direto), e não apenas o acesso a dados abertos ou outras informações” (POGREBINSCHI, 2017, p. 14).
  5. Os dados coletados, aqui analisados, correspondem à base de dados existente até 31 de maio de A plataforma está sendo sempre atualizada e, portanto, depois desse período, é possível que novas inicia- tivas sejam inseridas.
  6. Para Coleman, “a sustentabilidade da democracia depende da existência de modelos robustos de ava- liação pública que monitorem resultados democráticos, definindo a importância das questões e a rees- truturação de políticas subsequentes. Isso faz emergir a necessidade de tecnologias para transparência e accountability” (COLEMAN, 2017, p. 64).
  7. Vale salientar que os outputs considerados por Coleman são, aqui nesse recorte metodológico, apenas os outcomes ou resultados
  8. A implementação refere-se ao fato de ter sido a iniciativa de fato posta em prática ou não. O cumpri- mento da finalidade existe quando objetivos específicos da iniciativa foram alcançados sem gerar, neces- sariamente, resultados. Tais variáveis não serão tratadas aqui por não se referirem a resultados efetivos – interesse central da pesquisa aqui apresentada.
  9. Do total de 34 implementadas, 21 produziram
  10. Os cidadãos podem: a) ter assento em uma instância do governo ou ser a eles atribuído um papel no processo político (que pode ou não envolver a tomada de decisão); ou podem b) ser escolhidos ou autono- meados (em vez de eleitos) para agir em nome de outros cidadãos ou organizações, ou para representar interesses específicos (por exemplo, ambientais), grupos (por exemplo, minorias) ou localidades (por exemplo, bairros). Estes incluem uma ampla gama de formas não-eleitorais de representação, nas quais cidadãos ou organizações de sociedade civil atuam ou falam em nome dos demais, independentemente de terem sido autorizados para isso. Inovações democráticas que envolvem formas de representação cidadã também podem reproduzir internamente meios tradicionais de representação (eleições, delegação, voto) (POGREBINSCHI, 2017).
  11. As definições a respeito de cada um dos fins estão disponíveis em: https://www.latinno.net/pt/con- cepts/. Acesso em: 19 2018.
  12. Iniciativas com este fim incluem as “formas de implementação de leis e direitos, abrangendo a segu- rança individual e pública, a prevenção e o controle da criminalidade, a contenção de potenciais abusos de poder do Estado, a administração independente da justiça, a resolução de conflitos e o acesso à justiça. A garantia de direitos políticos e liberdades civis, bem como a proteção dos direitos humanos também inci- dem nesta categoria, a qual inclui também formas de elaboração de constituições e leis” (POGREBINSCHI, 2017, s/p).
  13. A metodologia do Índice da Democracia aplica 60 indicadores que atribuem a 167 países um score numa escala de 0 a 10. O grupo menos democrático é classificado como um conjunto de países com “re- gime autoritário”; a seguir, países com “regimes híbridos”. Em seguida, tem-se o conjunto de países com “democracia com falhas” e, finalmente, os países com “democracia plena” (aqueles que alcançam o score de 8,01). O Índice da Democracia revela que a maioria dos países na América Latina e Caribe não apre- sentam características de países com “democracia plena”. Apenas o Uruguai obteve score suficiente (8,12) para ser considerado “democracia plena”. Apenas outros três obtiveram o score acima de 7 (Chile, Costa Rica e Panamá). Os demais países ficaram entre 4 e 7, posições que apontam para regimes democráticos com falhas ou regimes híbridos, com exceção da Venezuela que obteve score 3,87 – o equivalente a um regime autoritário.

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