Inovação, Governança Digital e Políticas Públicas
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A Produção Compartilhada de Conhecimento: O Software Público Brasileiro

A Produção Compartilhada de Conhecimento: O Software Público Brasileiro

Christiana Soares de Freitas 1.

Corinto Meffffe 2.

Palavras-Chave

Revolução Tecnológica e Informacional, Produção Compartilhada de Conhecimento, Software Livre, Software Público, Transformações Sociais, Políticas e Econômicas.

 

Resumo

O objetivo principal deste artigo é apresentar a iniciativa do Governo Federal brasileiro de desenvolvimento do conceito de software público como um exemplo da tendência atual de produção compartilhada de conhecimento científico-tecnológico. A teoria aqui aplicada para a compreensão desse momento histórico é a da economia da informação em rede, desenvolvida por autores contemporâneos como [Benk06], [TaWi07]. A iniciativa governamental será exposta como aspecto constitutivo do cenário que caracteriza a segunda fase da Revolução Tecnológica e Informacional contemporânea. O conceito tem a sua aplicação prática na estrutura oferecida pelo Portal do Software Público Brasileiro, um dos espaços virtuais destinados à produção e disseminação compartilhada de conhecimento. O Brasil apresenta, com essa proposta, um modelo de competitividade autêntica, apontando possibilidades significativas de desenvolvimento socioeconômico e fornecendo elementos analíticos significativos para teorias que visam à compreensão das inovações tecnológicas e seu papel na atualidade.

 

Introdução

A Sociedade da Informação vive hoje momento único de possibilidades. A lógica das redes eletrônicas virtuais está presente em todas as esferas e arenas sociais e é responsável por mudanças significativas na sociedade. O objetivo deste artigo é analisar as transformações sociais e econômicas que ocorrem no Brasil a partir do processo de produção e distribuição de softwares livres e públicos. As sociedades contemporâneas atravessam, hoje, a segunda fase da Revolução Tecnológica e Informacional, por muitos caracterizada como a fase “web 2.0” [O´re04].

Vive-se ainda, no Brasil, situação em que é possível identificar, claramente, um grau significativo de exclusão digital. O Brasil, segundo pesquisa de 2007 do Comitê Gestor da Internet, tem um dos mais baixos percentuais de indivíduos na América Latina que possuem computadores pessoais. Além disso, a Internet ou outros espaços virtuais são pouco utilizados como mecanismos possíveis de geração de riquezas. Entre aqueles que já acessaram a Internet ao menos uma vez, o percentual de indivíduos que já divulgou ou vendeu algum bem ou serviço pela Internet é de apenas 4% (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2008).

Outra característica que representa a situação de exclusão digital de algumas camadas sociais no Brasil é a presença oficial de conexão banda larga em apenas 40% dos municípios brasileiros, o que reforça o modelo de concentração de acesso às tecnologias nas capitais e regiões mais desenvolvidas do país (Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2008). Ainda assim, redes sociais desenvolvem-se com base em novas normas, práticas e relações que tendem a modificar esse contexto verificado. Indivíduos têm a possibilidade de se tornar, simultaneamente, produtores e consumidores do que a eles é apresentado.

O artigo desenvolverá os referenciais teóricos dessa tese e, posteriormente, apresentará um exemplo de iniciativa adotada no Brasil, que pode ser considerada expressão – ou materialização – do período vivido. Essa materialização – representada por uma experiência bem-sucedida de desenvolvimento de um modelo de inovação tecnológica que congrega inúmeros atores sociais – sugere que o Brasil, no caso particular aqui analisado, ao invés de se colocar como uma economia em desenvolvimento, “cujo processo de mudança técnica em geral se restringe à absorção e ao aperfeiçoamento de inovações geradas em outras economias” [ReTa05], oferece um modelo original, até então sem precedentes no mundo. Insere-se, assim, em um modelo inovador, gerando “competição com base em vantagens tecnológicas” que gera, posteriormente, “competitividade autêntica” perante o mercado mundial. Significa dizer que o tema aqui em destaque – o do Software Público Brasileiro – representado por um conceito que se concretiza sob a forma de um espaço virtual para artefatos tecnológicos compartilhados e construídos de forma colaborativa, apresenta uma capacidade de “competitividade autêntica”, que é a “capacidade de manter ou aumentar a participação de determinado país nos mercados internacionais a longo prazo, proporcionando melhor padrão de vida à população” [ReTa05].

O modelo de inovação mencionado é possível graças ao que se observa desde o final do século XX: mudanças vividas em função da Revolução Tecnológica e Informacional apontadas por muitos autores, entre eles Castells, em seu livro “A sociedade em rede” [Cast99]. Novos padrões de produção e comunicação são desenvolvidos, alterando relações existentes nos domínios da ciência, economia, política e cultura. Sua característica principal e comum à primeira revolução tecnológica, pela amplitude e significado para a história, é a de promover transformações de forma pervasiva, penetrando em todas as esferas da atividade humana. No capitalismo informacional, a principal fonte de produtividade é “a ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos” [Cast99]. As tecnologias da informação e comunicação foram – e ainda são – os principais instrumentos que viabilizam tal processo, gerando um campo de ação específico que atua como um dos princípios estruturantes da organização social contemporânea [Frei04].

O desenvolvimento tecnológico em curso permite a criação constante de novas ferramentas que favorecem a geração, o processamento e o gerenciamento da informação, de formas cada vez mais complexas e eficazes. Representam o que as novas formas de energia representavam anteriormente, no início do capitalismo. Um dos elementos centrais caracterizadores da sociedade industrial foi a geração e distribuição de energia. Da mesma maneira, o que caracteriza a Revolução Tecnológica em curso é a aplicação do conhecimento e da informação na geração e distribuição de mais conhecimento, criando e desenvolvendo mecanismos de processamento e comunicação das informações em um processo cumulativo e retroativo entre inovação e suas formas de utilização. “Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força produtiva direta, e não apenas um dos elementos decisivos do sistema de produção” [Cast99]. De acordo com dados da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2001, cerca de 55% da riqueza produzida n mundo não vieram da terra, do capital, da mão-de-obra, da matéria-prima ou da energia, mas do conhecimento [Meff07].

Nesta segunda fase da Revolução Tecnológica e Informacional, verifica-se o desenvolvimento não somente de formas de produção em que o conhecimento é central, mas de formas de produção cuja base de construção do conhecimento é referenciada na colaboração entre indivíduos e entre redes. Autores como Benkler reconhecem e afirmam a importância da produção social colaborativa para o desenvolvimento econômico no atual período histórico [Benk06]. Observa-se a possibilidade de transformações que podem vir a alterar padrões até então observados nas relações econômicas tradicionais de produção. Os bens intangíveis, como a informação, o conhecimento e o software, passam a ter grande importância para o conjunto macroeconômico das sociedades contemporâneas [Meff08a]. O maior desafio, nesse novo contexto econômico, está em realizar a mensuração adequada dos custos de produção e compreender o elevado grau de complexidade da valoração financeira desses bens. Quando se analisa bens intangíveis, uma parte do custo é abstrata e de difícil aferição, algo com que já se convive, por exemplo, a marca, a patente, a pesquisa, o conhecimento e a informação.

Na economia dos bens tangíveis, estruturada sob o princípio da escassez, os recursos são limitados e de mensuração objetiva, o que facilita a sua identificação quantitativa. O princípio da escassez faz parte das definições contemporâneas para o estudo da ciência econômica. Com a obra fundamental de Lionel Robbins, An essay on the nature and significance of economic science, editada em 1932, os problemas da escassez seriam definitivamente incorporados à nova definição da Economia. Como ressalta Rossetti, “a Economia é, pois, a ciência que estuda as formas de comportamento humano, resultantes da relação existente entre as limitadas necessidades a satisfazer e os recursos que, embora escassos, se prestam a usos alternativos” [Ross87].

Ainda que o software seja um bem intangível, sua caracterização como um bem escasso ocorreu depois que se tornou rentável, resultado provocado de maneira artificial pelos modelos de licença, fato que ocasionou níveis de restrição de acesso aos códigos. Ao se recuperar a característica original do bem, pela aplicação de licenças livres, o software retoma seu pleno potencial na economia dos bens intangíveis. Esse é o objetivo de movimentos que defendem e aplicam softwares livres e públicos.

A experiência do software público, nesse cenário, é uma prática que desenha as bases futuras de produção colaborativa e compartilhada de conhecimento. Dois componentes estruturais são fundamentais: a criação de regras coletivas para os rumos da iniciativa preservando a sua continuidade – e a eliminação de barreiras que impedem a total disponibilização de um software, passando, indubitavelmente, pela superação dos modelos de propriedade intelectual tradicionais. No livro Wikinomics, [TaWi07], elementos que alinham a economia dos bens intangíveis com a experiência do Software Público Brasileiro são notórios. Como se verá com detalhes, mais adiante, a experiência brasileira aproxima-se do que os autores descrevem como o período histórico em que há, cada vez mais, indícios de que o compartilhamento e a colaboração, se feitos da maneira certa, criam oportunidades para que todos se beneficiem dos bens públicos.

Ao tratar da propriedade intelectual, Tapscott e Williams defendem um novo modelo, reforçando que “na economia atual, precisamos de um sistema de propriedade intelectual que recompense a invenção e estimule a abertura, alimentando a iniciativa privada e sustentando o domínio público” [TaWi07]. É possível verificar no modelo do software público as duas características acima, o que significa que a iniciativa pode ser vista como um exemplo das tendências assinaladas pelos autores. O Software Público Brasileiro apresenta-se como um modelo propulsor de uma “competitividade autêntica”, podendo proporcionar ao Brasil ligeira liderança na estrutura econômica que ora se configura.

Existem alguns fundamentos que ilustram a transformação em curso, tomando como parâmetro uma comparação entre passado, presente e futuro. O modelo econômico atual convive, ainda, com características do capitalismo industrial, fase anterior ao informacionalismo deste século. Os princípios da escassez, da produção centralizada, das relações hierárquicas e da propriedade privada ainda coexistem com novos modelos. Um deles é característico do período histórico atual e aquele que aqui interessa. Sua sustentação está nos bens não escassos, na produção colaborativa, nas relações em rede, na propriedade comum ou coletiva e na ascensão da importância dos bens intangíveis para o desenvolvimento econômico mundial.

Como se verá, ao longo do trabalho, a experiência do software público tem o seu modelo de produção observado como tendência futura por vários autores [Benk06]; [TaWi07]; [Amad08]; [SiVi08]. Essa tendência baseia-se na lógica comum de produção. Iniciativas desenvolvidas segundo essa lógica firmam-se como alicerces para o funcionamento de um novo modelo de mercado. A economia dos bens intangíveis afeta o cerne da concepção tradicional econômica e gera mudanças em toda a estrutura social. Um olhar sobre a iniciativa brasileira no tratamento dado ao bem software, desde a produção até seu modelo de distribuição e uso, fornece indícios dessa transformação proporcionada pela economia dos bens intangíveis, podendo situar o País como referência para a economia que é hoje delineada. É esta a proposta deste artigo.

 

2. A Economia do Conhecicimento Compartilhado e as Tecnologias de Computação Social

Benkler, em 2006, escreve The wealth of networks: how social production transforms market and freedom. O autor mostra que existe, hoje, não só a possibilidade de novas formas de produção, mas de fato a adoção de novas práticas de produção social, transformando as relações de mercado de forma abrangente. A Internet, que permite não apenas o compartilhamento de idéias, valores e ideais, mas também a disponibilização de meios de colaboração os mais variados, exerce papel fundamental. São esses meios – que transformam práticas e relações até então estabelecidas – que aqui interessam.

Simon destaca o conceito, elaborado por Benkler, de commons based peer production para designar essa nova forma de produção comum por pares. Segundo Simon, “não temos, em português, um termo adequado para o conceito de propriedade compartilhada por uma comunidade, o “commons”. Trata-se de uma nova modalidade produtiva de riquezas, em que uma comunidade aberta coopera, de forma essencialmente espontânea, descoordenada e voluntária, para a produção de um bem informacional ou cultural compartilhado. Esse modelo é diferente daquele de empresas contemporâneas, que têm um funcionamento rígido com base em hierarquias ou em fabricação de produtos para o mercado [SiVi08]; [Benk06].

O software livre tem papel central nesse processo, pois viabiliza armazenar e modificar significativamente as informações segundo a lógica de produção compartilhada. Representa o elemento constitutivo e central do período histórico em questão, subvertendo lógicas hierárquicas de trabalho e produção. Os artefatos tecnológicos que hoje possibilitam tais transformações são definidos por Tapscott e Williams como as “novas tecnologias de computação social” [TaWi07].

As práticas colaborativas de produção são possíveis graças à adoção, em larga escala, dessas novas tecnologias de computação social. Sua principal característica é a natureza colaborativa, que permite que todos construam conceitos e artefatos simultaneamente. A base do trabalho não é uma estrutura rígida e hierárquica, mas uma produção cujo modelo de inovação desenvolve-se “de baixo para cima”, e a opinião e a participação de todos os integrantes da rede são fundamentais.

A burocracia organizacional é deixada de lado em prol da agilidade e maior qualidade do que é produzido. Instituições as mais variadas, bem como empresas, começam a adotar ferramentas como blogs, wikis, salas de bate-papo e redes peer-to-peer (ou de par para par, em uma conexão direta que se estabelece entre indivíduos ou entre grupos). Essas possibilidades “garantem aos trabalhadores individuais um poder sem precedentes para a comunicação e a colaboração de maneira mais produtiva. Isso, por sua vez, engendra uma nova revolução qualitativa na colaboração no local de trabalho” [TaWi07].

Percebe-se, portanto, que a característica primordial das variadas formas de apropriação, uso e distribuição do conhecimento atualmente é a construção coletiva, que ocorre segundo uma lógica inovadora que marca as diferentes práticas, relações e valores contemporâneos [FrVe07].

Exemplo dessa lógica mencionada de construção colaborativa é o uso de páginas da Internet que se baseiam no referencial wiki de construção de saber. A wikipédia é um exemplo claro. Vários temas, assuntos e conceitos são inseridos no sistema, cada um em uma página virtual que pode ser construída por todos que a acessarem. Qualquer indivíduo que queira contribuir de alguma forma para a disponibilização da informação poderá fazêlo – basta editar a página e acrescentar suas definições. O wiki é um espaço virtual que pode ser editado por qualquer um que tenha acesso a ele. Provê uma forma fácil de ligação entre páginas na Internet. Wikis são, tipicamente, websites colaborativos. Ward Cunninghan, criador do primeiro wiki, o Wiki Web, descreve-o como “a base de dados online mais simples que pode existir – e funcionar” [TaWi07].

Outro exemplo de construção colaborativa é o processo de produção de softwares livres. O software livre não é apenas uma iniciativa econômica ou um artefato tecnológico. Nasce com princípios políticos e teóricos que visam ao compartilhamento de conhecimento e informação. Pode-se dizer, hoje, que representa um movimento social com base em quatro liberdades identificadas como imprescindíveis para a criação, a utilização e a distribuição do software livre.

Segundo um dos líderes mais ativos e reconhecidos desse movimento, Richard Stallman3, são quatro as liberdades indispensáveis ao usuário de um software livre:

  • A liberdade de executar o programa, para qualquer propósito;
  • A liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo às suas necessidades. Vale ressaltar que o acesso ao código fonte é um pré-requisito para essa liberdade;
  • A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa colaborar com os outros;
  • A liberdade de aperfeiçoar o programa e liberar os seus aperfeiçoamentos, de modo que toda a comunidade se beneficie.

Interessante observar que esse ideário de liberdade nasce em consonância com os princípios políticos da sociedade norte-americana de autonomia, independência e liberdade de expressão. Desenvolve-se no seio do sistema capitalista, alimentado – e retroalimentado – pelos seus mecanismos de produção e reprodução. Ao mesmo tempo, representa uma possibilidade de superação do mesmo sistema que viabilizou o seu surgimento, a partir do momento em que alimenta, também, outros mecanismos de produção, não voltados, necessariamente, para a obtenção de um lucro objetivamente mensurável.

O capitalismo informacional oferece, especialmente mediante o uso das novas tecnologias de computação social, espaços e possibilidades para um conjunto de relações sociais que tendem a criar mudanças emblemáticas, algumas delas criticadas pelo modelo liberal há poucas décadas. Uma dessas mudanças é o tratamento dado ao conceito do “público”.

A ampliação da esfera do público, nos últimos anos, revela a demanda da sociedade ainda não suprida por modelos econômicos até então adotados. A distribuição de renda e o desenvolvimento que viriam com um modelo neoliberal, experimentado pelo Brasil especialmente na década de 1990, não aconteceram. A contradição permanece ativa, e os limites entre o público e o privado são cada vez mais tênues. O que se observa atualmente, cada vez com mais frequência, é a apropriação pública de bens e serviços para a livre concorrência dos mercados.

Nuria Grau descreve o cenário ao afirmar que “o mundo já não admite posições absolutas, nem em relação ao privado e nem ao público, mas antes reivindica sua reinterpretação, para que o ser humano, como tal, possa ser localizado, realmente, no centro do desenvolvimento” [Grau98].

 

3. A Materialização do Conceito de Software Públicico ou a Inovação “de Baixo para Cima” no Brasil

Para atender a demandas da comunidade de software livre, em especial das empresas e dos desenvolvedores de código, em 2005, o Governo Federal licenciou o seu primeiro software livre, seguindo as prerrogativas legais do País. Esse artefato veio, posteriormente, dar sustentação ao conceito de software público. Tratava-se da solução de inventário de hardware e software CACIC (Configurador Automático e Coletor de Informações Computacionais), desenvolvida pela Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) e lançada no 6º Fórum Internacional de Software Livre, em Porto Alegre, sob a segunda versão da licença GPL em português.

O software CACIC é uma solução que fornece um diagnóstico preciso do parque computacional das organizações e disponibiliza informações do ambiente, como o número de equipamentos e sua distribuição nos mais diversos órgãos, os tipos de softwares utilizados e licenciados, configurações de hardware, entre outras. Também pode fornecer as informações patrimoniais e a localização física dos equipamentos, ampliando o controle do parque computacional e a segurança na rede.

A experiência do CACIC que, a princípio, atenderia a demandas internas do governo, aos poucos demonstrou extrapolar o setor público federal. Esse fato trouxe a percepção de que o software, na verdade, atendia a uma demanda reprimida da sociedade. Em pouco tempo, após a liberação da solução, formou-se uma extensa comunidade de usuários e desenvolvedores.

Além disso, outro fenômeno começou a surgir com o modelo de liberação do CACIC. O fato de o software ser disponibilizado em um ambiente público de colaboração possibilitou a intensificação do uso da ferramenta. Na ocasião, já existiam ferramentas livres, abertas e proprietárias que ofereciam funcionalidades semelhantes às do CACIC, várias delas mais maduras e estáveis. Entretanto, a rapidez com que a solução foi adotada em todos os setores da economia, cercada pela sua rápida distribuição, fez com que em menos de um ano fosse criada uma rede de prestadores de serviços para o software em questão, abrangendo todos os estados brasileiros. Aos poucos, a sociedade começou a assumir um papel dinâmico no processo de desenvolvimento do software, não apenas atuando em sua transformação, mas colhendo frutos do ambiente compartilhado de produção colaborativa de conhecimento.

Sabe-se, em função da legislaçãocorrente, que o software desenvolvido por instituições de direito público é, por natureza, um bem público. A premissa de que o software é um bem público e a de que deve ser disponibilizado pelo setor público extrapolam as regras restritas aos princípios do código livre. Tais premissas, amparadas por Lei, estabeleceram a base para o conceito de software público, cujo mote principal é a manifestação do interesse público por determinada solução. O impacto inicial da disponibilização do sistema de inventário CACIC pelo Governo Federal sustentou as primeiras condições básicas para a formulação do modelo, a saber:

  1. O produto: tratar o software como um produto acabado, que chega à sociedade com documentação completa de instalação e preparado para Isso não significa que o artefato não possa ser alterado, modificado e distribuído livremente;
  2. Os serviços associados: organização de um conjunto de serviços básicos, tais como a página na internet, o fórum ou a lista de discussão para desenvolvimento, suporte e projetos, a ferramenta de controle de versão e a documentação do sistema;
  3. A prestação de serviços: formulação de um procedimento simplificado na relação do governo com o cidadão que acessa os serviços associados, possibilitando a ele conhecer as informações da comunidade e resolver as questões relacionadas ao software com a disponibilização, por parte do governo, de uma equipe de atendimento para a comunidade;
  4. A gestão da colaboração: incentivo à colaboração entre os diversos usuários e desenvolvedores da ferramenta, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, de qualquer setor da economia, por meio de ações indutoras. Percebe-se, aí, a necessidade de estruturar instrumentos de gestão e controle mais rigorosos, visando estabelecer a periodicidade do lançamento de novas versões e a definir parâmetros de controle de qualidade no desenvolvimento das soluções.

As primeiras características do modelo, descritas acima, podem ser aplicadas tanto no modelo de software livre, quanto no de software público, fato que aproxima os dois conceitos. Contudo, os resultados obtidos com o ecossistema de produção do CACIC e o lançamento, em 2007, do Portal do Software Público Brasileiro foram, gradualmente, fundamentando e consolidando o conceito de software público, diferenciando-o do livre. Os elementos essenciais do conceito de software público são os seguintes:

  1. A necessidade de cuidar da propriedade intelectual da marca e do nome da solução a ser disponibilizada junto com o licenciamento. A licença GPL considera o escopo do código, como define a Lei do Software, mas o nome e a marca são tratados pelo ramo da propriedade A intenção é tratar o nome da solução, a marca e o código em um processo de liberação uniforme;
  2. A manifestação expressa do interesse público no software: além da combinação de requisitos tecnológicos, o software deve se fundar na ampliação de “consumo” da população, em lugares que a solução a ser disponibilizada atenda a demandas da sociedade. Ao satisfazer as necessidades sociais, o setor público beneficia a população e é beneficiário do modelo de produção colaborativa;
  1. A formação da base pública de produção colaborativa de software. Esta característica apresenta relação de dependência direta com os dois itens anteriores, estabelecendo um conjunto de regras coletivas e comuns aos integrantes do modelo;
  2. A alteração na alocação de recursos públicos, movimentando outros agentes econômicos para a disseminação da solução. Além de acompanhar o interesse público, também desenvolve componente estratégico para a formulação de uma política pública específica para o bem

Como colocado anteriormente, os motivos que envolvem as intenções da Administração em compartilhar sistemas passam pela possibilidade de reduzir os esforços para o desenvolvimento de soluções, aproveitar códigos estáveis já existentes e economizar tempo de produção. Já a sociedade tem nuances diferenciadas para as suas demandas, que podem passar pelas restrições financeiras para adquirir uma solução informatizada e pelo desconhecimento de como se poderiam beneficiar do uso de algum software. As necessidades são, na maioria das vezes, diferentes umas das outras, mas complementares.

Existem soluções que são de interesse da Administração Pública e, de alguma forma, resolvem problemas comuns a diversos órgãos do setor público. Outras, além de atender a demandas do governo, também podem ser úteis na resolução de necessidades da sociedade. O que se observou, nos últimos anos, foi que algumas soluções de interesse de uma determinada instituição pública já haviam sido desenvolvidas por algum outro órgão. Isso significa afirmar que uma boa parte das necessidades de soluções informatizadas podem ser atendidas pelos sistemas já desenvolvidos pelo próprio setor público. Há, com isso, produção e distribuição comum por pares.

Estabelece-se, entre as comunidades de interesse, um espaço de compartilhamento e de produção colaborativa de conhecimento. Em espaços virtuais pertencentes a essa segunda fase da Revolução Tecnológica, como o Second Life4 e o próprio espaço da iniciativa do Software Público, os usuários não são apenas consumidores de produtos acabados. Participam também como programadores, membros da comunidade e empreendedores. Tapscott e Williams descrevem esse tipo de comunidade como aquela composta por prosumers, consumidores que são, simultaneamente, produtores do espaço que criam e recriam incessantemente.

Os integrantes das comunidades – usuários da sociedade em geral, empresários ou membros do governo – experimentam não apenas a lógica wiki, exposta anteriormente, mas também a lógica do fenômeno “faça você mesmo”. Os sentimentos de participação social e prestígio que sentem os integrantes fortalecem os laços entre redes e proporcionam a produção e a distribuição de conhecimento de forma mais ágil. Segundo pesquisas etnográficas realizadas, “os usuários não precisam inovar isolados ou esperar a próxima reunião mensal dos aficionados por eletrônica para compartilhar seus artefatos customizados” [TaWi07]. Além da agilidade na produção do conhecimento, este é criado por aqueles diretamente interessados em seus resultados, gerando economia em diversos setores, evitando, por exemplo, a produção de artefatos que não serão posteriormente utilizados.

A diferença crucial entre o espaço virtual do Software Público Brasileiro e os demais ambientes desse período histórico é o fato de a iniciativa ressaltada visar ao desenvolvimento social e econômico, suprindo demandas e carências com as possibilidades oferecidas e tratando o software como um bem estratégico para o crescimento do país.

Uma boa parte dos espaços virtuais da web 2.0 visa à obtenção e à apropriação privada de lucro. O Portal cumpre duas funções essenciais: centralizar a oferta, a demanda e os prestadores de serviços em um único ambiente de colaboração e oferecer os resultados dos esforços de produção para a coletividade. Tais características tornam o ambiente do Portal um espaço web 2.0 no qual a riqueza é produzida, distribuída e apropriada por toda a sociedade. Como se trata de um bem cujo uso gera benefícios em outros setores da economia, é possível verificar que um ciclo virtuoso se instaura, pois, além dos resultados objetivos observados, como serviços de instalação, suporte, customização e treinamento, outros segmentos são beneficiados por ter acesso direto a uma solução informatizada que, ao ser utilizada, melhora os processos internos e externos de uma organização. Assim, são estabelecidos três estágios de qualidade do software: um inerente ao bem – código –, outro de aplicação direta do software na resolução dos problemas – produto – e o último relacionado à melhoria de uma cadeia produtiva com a customização do software – solução/serviços.

O espaço de materialização do conceito aqui tratado é o Portal do Software Público Brasileiro, no qual todos os usuários vivem a experiência de se identificar como prosumers dos artefatos disponibilizados. Os integrantes das comunidades, dispostos em redes, participam ativamente da criação conjunta e da co-inovação dos produtos ofertados.

 

4. O Ecossistema do Software Público: O Portal

O Portal do Software Público Brasileiro5 busca promover um ambiente de colaboração de usuários e desenvolvedores, auxiliando o desenvolvimento, a disponibilização e o suporte aos softwares que aderem ao conceito. O Portal foi lançado em 12 de abril de 2007, no 8º Fórum Internacional de Software Livre de Porto Alegre. Alcançou mais de 3.000 membros inscritos em menos de um mês de seu lançamento.

O espaço do Portal oferece à sociedade, após um ano e meio de seu lançamento, 17 soluções em diversas áreas (educação, geoprocessamento, informática, administração e saúde), reunindo mais de 29.000 usuários6. Paralelamente ao crescimento do número de usuários, iniciou-se uma movimentação vigorosa do modelo de negócios estabelecido com o Portal, principalmente com a adesão de um número crescente de prestadores de serviços. No período de um ano, foi estruturada uma rede de mais de 500 prestadores de serviços para o CACIC, a solução disponibilizada que mais reúne usuários no espaço em questão. O Portal, hoje, consolida-se como um espaço para a disponibilização de softwares do setor público para a sociedade. Desde o seu lançamento, a experiência do software público encontrou adeptos

em diversos segmentos da sociedade. A consonância de interesses deve-se, principalmente, ao modelo adotado. A disponibilização das soluções, tal como feita, atende a demandas antigas da sociedade no setor de Tecnologias da Informação, em especial do setor público. Entre elas, podem ser destacadas:

  1. O interesse direto das instituições públicas em disponibilizar soluções informatizadas para outros entes públicos e desenvolvê-las de forma colaborativa;
  2. A necessidade de atender a questões legais que assegurem a disponibilização de soluções pela Administração Pública;
  3. A percepção atual de que a continuidade da disponibilização das soluções deve ocorrer independentemente das mudanças na estrutura dos Significa que existe a demanda por uma política de Estado que transcenda políticas governamentais.

O número de parcerias aumentou rapidamente pelo fato de a experiência do Software Público atender a essas preocupações e criar um conjunto de procedimentos uniforme e sólido para o gestor público. Diversas entidades representativas aproximaram-se para contribuir, no âmbito do conceito do software público, com temas e saberes específicos, como qualidade, capacitação profissional, fomento, gestão e articulação internacional.

A aproximação com outros segmentos da sociedade ocorreu de duas formas básicas. A primeira teve como base e referência os caminhos propostos pelos coordenadores do Portal do Software Público que decidiram absorver, de imediato, as oportunidades que apareciam na medida em que o modelo avançava, como no caso do cadastramento dos prestadores de serviços para o CACIC. Neste momento, foi possível começar um movimento de organização da oferta de serviços para cada solução. O Portal, progressivamente, passou a congregar tanto aqueles que ofertavam serviços e soluções para os artefatos existentes quanto os que demandavam tais serviços, criando um ciclo econômico em seu interior com base na oferta e demanda de produtos e serviços.

Os demandantes são atores sociais das mais variadas origens, com objetivos os mais diversos. Esta é uma característica essencial do modelo que o aproxima das formas de produção colaborativa de informação e conhecimento. Soluções para problemas que surgem são, muitas vezes, dadas por indivíduos no interior do País, sem vínculo com o Estado ou com empresas. As soluções são, nesse sentido, construídas e desenvolvidas “de baixo para cima”, democraticamente. Não há hierarquia rígida, característica que, para alguns teóricos habituados ao modelo tradicional de produção do conhecimento, pode indicar um “caos” [FrVe07]. Aqueles que trabalham com o modelo, contudo, percebem a ausência de estruturas excessivamente estáticas e protocolares como uma das causas do sucesso da iniciativa.

A segunda forma de aproximação com outros segmentos interessados na iniciativa foi a incorporação, no Portal, do conjunto de necessidades que surgiam por parte de cada novo envolvido com a experiência. A partir da articulação com outros atores, o processo de expansão do conceito de software público foi significativamente acelerado.

As características do conceito de software público fazem com que o ecossistema do Portal do Software Público Brasileiro seja moldado e adaptado com frequência. Certamente a maturidade atual do modelo já superou as expectativas primevas do projeto, voltado, inicialmente, para o simples compartilhamento de softwares entre entes governamentais.

Atualmente, empresários interessam-se pelo modelo e estão dispostos a ofertar software no Portal. Isso ocorre em função da transição do modelo de negócio. O modelo proprietário tem a intenção de venda da licença de uso. Ao optar pelo Portal do Software Público Brasileiro, ocorre a transição de um modelo de negócio para outro, em que a solução é ofertada para a sociedade sem o custo de licenciamento.

Perceberam que, ainda que ofereçam o produto sem lucro imediato, participarão de uma rede de negócios que congrega mais de 29.000 usuários, possibilitando não apenas o conhecimento do seu produto, mas também o aumento do seu valor, a partir do momento em que passa a ser conhecido – e reconhecido – por uma grande rede de atores do setor. Além disso, cada vez que um indivíduo incrementa um artefato tecnológico, a ele é agregado valor, contribuindo para o sucesso do empreendimento e o desenvolvimento econômico de todo o ecossistema do qual participa. Observa-se um modelo em que o cliente/usuário é o centro do processo de desenvolvimento de artefatos e de produção de conhecimento [TaWi07]. Essa é a tendência observada no atual estágio das transformações tecnológicas e informacionais em curso.

Modelos teóricos até então elaborados, como o da tripla hélice [Maci01], analisam a configuração socioeconômica atual segundo a interação entre atores de campos diversos – como os das universidades, do Estado e das empresas. Tais modelos, entretanto, revelam-se com pouco – ou nenhum – poder explicativo para a análise desta fase web 2.0. Os indivíduos não são mais porta-vozes de uma lógica específica de um campo social determinado; o ator social é tanto produtor quando consumidor, seja em uma universidade, em esferas governamentais ou em empresas [Frei03]. Tanto beneficia a sociedade, ao participar do processo de produção compartilhada de conhecimento, quanto é por ela beneficiado, a partir do momento em que as colaborações dos outros também interferem no processo da sua própria produção. Faz-se mister continuar e aprofundar as análises teóricas acerca dos impactos provocados pelo novo modelo de geração, distribuição e apropriação de riquezas neste período de intensas transformações da história humana.

 

5. Conclusão

O grau de inovação proporcionado pela experiência do Software Público Brasileiro delineia cenários que apontam resultados promissores para a gestão de Tecnologias da Informação e Comunicação na administração pública. Os indícios surgem do rápido aumento do acervo de soluções disponibilizadas, da expansão do uso dos softwares existentes no Portal, do envolvimento da sociedade no desenvolvimento colaborativo e da chegada de inúmeros atores interessados em fortalecer a iniciativa. Neste momento, o Portal consolidase como um espaço legítimo de compartilhamento de soluções no setor público, onde a própria sociedade é diretamente beneficiada [Meff08b].

Aos poucos, uma rede de prestadores de serviços em torno de cada solução é consolidada, extrapolando os limites do processo de produção, uso e distribuição de cada software. Inicialmente, o objetivo da iniciativa era apenas melhorar a gestão das tecnologias da informação no setor público. Neste momento, além de atender a essa meta, tende a criar, também, um modelo de negócios sustentável no mercado de software, capaz de se tornar referência para a economia dos bens intangíveis.

Além disso, dois fatores indicam a tendência à consolidação do conceito de software público. O primeiro é a menção explícita do Portal do Software Público Brasileiro na publicação da Instrução Normativa para Contratação de Serviços de Tecnologia da Informação do Governo Federal7. Essa citação convenciona que as contratações dos serviços relacionados ao software precisam considerar, antes da contratação, as soluções que compõem o acervo do Portal e, ao mesmo tempo, incentiva o seu desenvolvimento com base nas soluções disponibilizadas.

O segundo surge da recente veiculação de notícias sobre as adesões dos municípios e do meio acadêmico ao modelo adotado pelo software público8. Essas adesões indicam o grau de confiança e solidez que o conceito do software público alcançou. Assim, mesmo que ocorra alguma alternância em setores do poder executivo nacional, outros atores, de esferas sociais distintas, garantirão a continuidade da iniciativa. O Portal do Software Público extrapola os limites governamentais, demonstrando que a experiência pode vir a se tornar uma política do Estado Brasileiro.

Os dois motivos expostos acima fornecem elementos qualitativos para a consolidação do conceito. Entretanto, existem também elementos quantitativos, já contabilizados pelo Portal, que fornecem sinais evidentes da adesão e da participação da sociedade:

  • há mais de vinte e seis mil pessoas com cadastramento válido no ambiente;
  • ultrapassam 30 as instituições do setor público interessadas em disponibilizar soluções;
  • há 17 soluções liberadas e mais 15 em processo de disponibilização;
  • a rede de prestadores de serviços, do recém lançado Mercado Público Virtual, alcançou mais de 100 prestadores cadastrados;
  • há mais de 200 pessoas diferentes que enviam mensagens aos fóruns a cada mês;
  • os valores das soluções disponibilizadas no Portal, tomando como base o valor de custo de desenvolvimento, somam aproximadamente 30 milhões de reais.

Os resultados acima são expressivos, mas percebe-se a necessidade de pesquisas voltadas para compreensão e análise acuradas do processo de funcionamento do modelo. No momento, uma pesquisa em andamento busca averiguar os resultados mais abrangentes observados, especialmente as implicações sociais, políticas, econômicas e culturais do uso do software público pela sociedade. Esta pesquisa tem como base teórico-metodológica a teoria da Análise de Redes Sociais [WaFa94]. Aperspectiva analítica centra-se na explicação das relações entre ações e concepções individuais, permeando eventos observáveis em determinado contexto [Elst94]. A escola de pensamento mencionada, voltada para a análise de redes sociais, argumenta que as categorias sociais abrangentes (tais como classe e gênero) são compreendidas de forma mais aprofundada mediante a análise das relações entre os atores sociais. Sendo assim, é possível derivar – de um conjunto de relações observadas entre atores individuais – mapas e tipologias de estruturas sociais [WellBe88]. Entre os conceitos mais relevantes da Análise de Redes Sociais destacamse os de atores sociais, laços, motivações individuais e estruturas sociais [Well97]. De acordo com esta perspectiva teórico-metodológica, “os atores e suas ações são vistos como unidades interdependentes, ao invés de autônomas”. Essa é a perspectiva adotada para a compreensão do Portal do Software Público.

O Portal tem como referências básicas de funcionamento a presença da oferta, da demanda e dos prestadores de serviços no mesmo ambiente de colaboração. Tais referência sofrem transformações, especialmente quanto a mudanças de comportamento no processo de produção de software:

  1. A oferta: a instituição que disponibiliza uma solução tem um espaço de colaboração dos usuários integrado com o ambiente dos desenvolvedores e dos prestadores de serviço;
  2. A demanda: o usuário tem acesso a um conjunto de soluções dentro de um único ambiente, podendo usufruir e participar do desenvolvimento do código e ter a garantia de continuidade da solução em decorrência do ambiente público de produção;
  3. O prestador de serviços: as empresas e os autônomos têm as suas colaborações reconhecidas pelos clientes, podendo prestar serviços para mais de uma solução ofertada e ser consultados de forma rápida pelo usuário.

Um dos grandes aprendizados da experiência do software público baseia-se na observação das demandas institucionais, em especial as do setor público, integrando-as às dos usuários, aproximando, assim, demanda e oferta. Ocorrem, com isso, a aceleração do desenvolvimento e da utilização das soluções, o aumento da demanda por serviços prestados e a ativação de um ciclo econômico em torno de cada software. Uma espécie de ciclo virtuoso, no qual todos os envolvidos são beneficiados com o resultado da produção.

A consolidação do software público abre um conjunto de oportunidades sem precedentes, pois o ambiente onde se encontra o acervo de soluções tem sua estrutura tecnológica baseada na web 2.0 e o bem produzido é intangível [Meff08a]. No futuro, ações diferenciadas poderão ser realizadas com a oferta, a demanda e o prestador de serviços de cada software.

A partir de agora, as atenções podem ser deslocadas da disponibilização dos softwares, cujos procedimentos são rotineiros, para a melhoria da qualidade de cada solução e a ampliação do rol de parcerias com foco nessa qualidade. O objetivo é estruturar um modelo de produção compartilhada em que cada perfil de usuário tenha o seu papel definido no ambiente colaborativo.

O que existe de mais importante neste momento de consolidação é o que poderá acontecer no futuro, a partir da combinação de três fatores: o tratamento dado ao bem público, o modelo estável para a economia dos bens intangíveis e o modo de produção com base na colaboração.

Em 2005, falava-se da maturidade do conceito do software público. O ano de 2008 ficará marcado como o ano de sua consolidação. Na verdade, um marco que encerra a fase de estruturação do modelo. Esse fato amplia as possibilidades futuras em função da montagem da base comum de produção colaborativa do bem intangível software, como previsto por autores aqui mencionados, como [TaWi07]. É possível afirmar que a consolidação do software público em 2008 representa apenas o início das transformações que estão por vir na sociedade brasileira. Tais transformações são possíveis graças ao período histórico atual, em que as tecnologias de computação social permitem a produção e circulação do conhecimento de forma colaborativa e compartilhada, promovendo mudanças profundas nas práticas, valores e normas que envolvem as esferas sociais, políticas e econômicas das sociedades contemporâneas.

1. E-mail: cfreitas@unb.br

2. E-mail: Corinto.Meffe@planejamento.gov.br

3. In: Free Software, Free Society: Selected Essays of Richard M. Stallman (http://www.gnu.org/doc/book13.html)

4. O Second Life é um ambiente virtual e tridimensional que simula em alguns aspectos a vida real e social do ser humano. Foi desenvolvido em 2003 e é mantido pela empresa Linden Lab. Dependendo do tipo de uso, pode ser encarado como um jogo, um mero simulador, um comércio virtual ou uma rede social. O nome Second Life significa em inglês “segunda vida” que pode ser interpretado como uma “vida paralela”, uma segunda vida além da vida “principal”, “real”. Dentro do próprio jogo, o jargão utilizado para se referir à “primeira vida”, ou seja, à vida real do usuário, é “RL” ou “Real Life” que se traduz literalmente por “vida real”. Esse ambiente virtual tem recebido ultimamente muita atenção da mídia internacional, principalmente as especializadas em informática, pois o número de usuários cadastrados e também os ativos têm crescido significativamente, e ainda cresce em forma exponencial. Até julho de 2008, contava com mais de quatro milhões de usuários (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Second_Life). – Acesso em:.julho de 2008.

5. Esse espaço virtual será ora denominado “Portal do Software Público Brasileiro” ora apenas “Portal” como forma de caracterizá-lo. Pode ser acessado em: www.softwarepublico.gov.br .

6. Dados de novembro de 2008.

7. IN04 Instrução Normativa para Contração de Serviços do Governo Federal. http://www.governoeletronico.gov. br/anexos/instrucao-normativa-in-nb0-4

8. [2] Academia vai colaborar com o Portal do Software Público http://www.softwarepublico.gov.br/web/oneentry?entry%5fid=5668487 <http://www.softwarepublico.gov.br/web/one-entry?entry_id=5668487> Prefeituras brasileiras vão disponibilizar soluções no Portal do Software Público

Keywords

Technological and Informational Revolution, Shared Knowledge Based Production, Free Software, Public Software, Social, Political and Economic Transformations

 

Abstract

The main goal of this article is to present the Brazilian Federal Government initiative of developing the public software concept as an example of the tendency observed nowadays of shared knowledge production. The applied theoretical principles to understand this historical moment is the networked information economy theory, developed by contemporary authors such as Benkler, Tapscott and Williams (2007). The federal government initiative is one aspect of this reality, shaping the scenario that characterizes the second phase of the Informational and Technological Revolution. The concept has its practical application at the Public Software Portal, virtual space organized for the development of shared knowledge production and dissemination. With this initiative, Brazil presents a model of authentic competitiveness, indicating significant possibilities of social and economic progress. It also provides important analytical elements for the development of theories regarding the comprehension of technological innovations and their role in contemporary societies.

 

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Sobre os autores

Christiana Soares de Freitas

Possui doutorado em Sociologia da Ciência e da Tecnologia pela Universidade de Brasília e Open University, Inglaterra (2003). Atualmente é pesquisadora associada do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e do Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (NESUB/UnB) da mesma universidade. Atua também como consultora ad-hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e como integrante e membro do Conselho Fundador do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (Liinc) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo editora de sua revista eletrônica. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Ciência, Tecnologia e Inovação. Conceitos e campos tratados incluem o novo modo de produção do conhecimento científico e tecnológico; o capital tecnológico-informacional; tecnologias de informação e comunicação; software livre e software público; publicação eletrônica; democratização do conhecimento na sociedade da informação, inclusão social, digital e uso da internet nas sociedades contemporâneas. Suas principais publicações incluem: Information technologies & new challenges for scientific knowledge production (2001), Hierarchy & power in contemporary societies” (2003), Capital tecnológico-informacional (2004) e Segredo e democracia: certificação digital e software livre (2007).

Corinto Meffe

Iniciou sua carreira na Dataprev em 1989. Por dois anos, foi gerente de automação de escritórios e dois anos gerente de projetos. Atua com software livre desde 1998 e já realizou mais de 100 palestras sobre esse tema no setor público. Coordenou, entre 1998 e 2001, o Projeto de Migração de 200 servidores do ambiente novell para o ambiente linux na empresa Dataprev, parque que atualmente conta com mais de 500 servidores. Em 2003, assumiu a gerência de inovações tecnológicas do Ministério do Planejamento. Foi coordenador executivo do Guia Livre referência de migração para software livre do Governo Federal, do plano de migração para software livre do Ministério do Planejamento, da metodologia de avaliação de distribuição livre, do Guia de cluster, da montagem do Laboratório de Cluster do Ministério do Planejamento, com 32 nós e 4.5 terabytes distribuídos, onde rodam os portais de inclusão digital e de software público do Governo Federal em ambiente livre. Em 2005, foi responsável pela liberação do primeiro software livre com a licença GPL do Governo Federal: o Sistema de Inventário CACIC. Atualmente coordena o projeto do Grid Computacional do Governo Federal Brasileiro, o Portal do Software Público e a estruturação do Mercado Público Virtual, espaço onde uma rede de prestadores oferta serviços para as soluções livres do governo.

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